sábado, 5 de abril de 2025

#Verborragia: Fenda — Parte 1: O Chamado

 Em uma fria, mas iluminada, manhã de outono, Noam Elian acordou e foi para fora, observar o mundo através de sua sacada.

Inclinado às letras e inspirado pela beleza que lhe atingia de todas as direções, sentiu e então verteu em texto:

"Gosto destas manhãs que, apesar de ensolaradas, são frias;

Não me agasalho; fico até sem camisa; isso é importante.

Vou para fora. O toque frio em toda a pele, desprotegida, é um lembrete agradável de que se está vivo.

Respiro fundo! O mesmo frio ajuda a sentir o caminho do ar -prana- até os pulmões. Vida!

Gosto destas manhãs mais frias, e do contraste do que se sente onde toca o vento e onde toca o Sol.

Eu gosto de manhãs assim."

Em uma turva pausa de tarefas, Sofya percebeu-se apreensiva. Por um período de tempo impossível de mensurar, como se não existissem calendários ou relógios, atuou automaticamente, respondendo ao que lhe era solicitado, produzindo o que era cobrado, e isso parecia vida, já que não tivera a oportunidade de conhecer outra forma de viver. Ainda assim, em uma turva pausa de tarefas, Sofya sentiu-se atingida por algo. Não sabia descrever, inédito que era, depois de tanto tempo mergulhada no automatismo. Talvez um rápido toque de um vento frio, vindo não se sabe de onde. Ela, inclinada às letras e inspirada por aquele súbito momento de consciência, registrou em si, ainda que não tenha digitado em lugar algum:

"Por um momento me senti chamada, mas ao redor não encontrei quem chame

E desejei ser de todo amada, mas como pode haver quem proclame

Um sentimento que jamais se viu, só se lia, era teoria

Me julguei, como em desvario, mas, é fato, eu quero esta via

Neste mundo feito de apatia, esse frio me fez sentir viva

E então vi que já sorria, nesse fôlego que me motiva…"

ia escrever mais, mas foi interrompida por novas demandas. Mergulhou no automatismo e se perdeu.

Noam acordou de súbito, no final da madrugada. Apanhando o celular viu a hora: 04:38.

Seu quarto nunca estava completamente escuro. Acostumado a dormir com a janela aberta, produzia-se uma penumbra derivada da iluminação publica. Quando, com sorte, do luar penetrando o cômodo. Naquela noite, porém, o céu estava nublado, ainda assim, uma claridade adicional se instalara.

Tomando a cama por referência, na direção para a qual ficavam seus pés (se você conhecesse a casa saberia que era para o Sul), notou uma espécie de rachadura na parede, uma fenda finíssima, prolongando-se por uns 30 centímetros. A fenda emitia uma luz intensa, como se do outro lado estivesse o mais ensolarado dos dias.

Noam se levantou mas não foi até a fenda; correu para a janela, à direita da cama (oeste), para identificar se, por fora, havia alguma fonte de luz que justificasse o que chegava pela fenda. Não havia nada à esquerda de sua casa que justificasse a luz dentro do quarto. Morava em um sobrado e a  casa à esquerda era térrea, assim, se a fenda atravessasse a pare e desse acesso ao outro lado, a luz deveria ser proveniente do telhado do vizinho, o que não era o caso. Lá fora, só a luz dos postes, invariavelmente mais fraca que a luz que se espalhava pelo quarto.

Recuou e dirigiu-se à fenda em si. Passou as mãos e sentiu a textura. O tato lhe revelava, na solidez da parece, as impressões naturais de uma rachadura comum, mas havia algo mais. Um quê de calor. Não era como o agradabilíssimo toque do Sol da manhã anterior; era um tipo de mormaço, muito mediano entre o quente e o frio, mas evidentemente distinto do frio do quarto de daquela noite de outono. De onde vinham aquela luz e calor?

Aproximou os olhos, tentando espiar o que poderia haver do outro lado. Imagine-se olhando o mundo ao seu redor através de um pedaço translúcido de um cristal branco, leitoso na verdade. Não é possível ver nada com nitidez, mas poder-se-ia identificar "individualidades" movendo-se em direções distintas. Foi o que ele viu.

Ficou muito tempo ali, espiando, tentando compreender o que via, mas não compreendeu. Vencido pelo sono, retornou à cama e dormiu, mais ou menos quando começou a chover.

Sonhou com uma ex-namorada, pessoas mergulhando em uma cachoeira no meio da sala, um passeio de moto pelo centro da cidade e uma voz desconhecida dizendo ""Obrigada por me trazer contigo nesse trajeto tão íntimo.

E obrigada, também, por me deixar ser o "depois" dessa história.

O caminho novo.

A via que o coração te mostrou."

Acordou assustado, preocupado com o horário. Verificou e não estava atrasado. Fitou a fenda, imaginando que havia sonhado. Estava lá. Transmitia mais claridade que o Sol que já havia raiado. Por mais que desejasse explorar aquele fenômeno, as urgências da vida lhe chamavam e preciso retirar-se, dirigindo-se ao trabalho.

Continua em Fenda – Parte 2: O Contato

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